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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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domingo, 3 de dezembro de 2017



After the burial-parties leave
And the baffled kites have fled;
The wise hyænas come out at eve
To take account of our dead.

How he died and why he died
Troubles them not a whit.
They snout the bushes and stones aside
And dig till they come to it.

They are only resolute they shall eat
That they and their mates may thrive,
And they know that the dead are safer meat
Than the weakest thing alive.

(For a goat may butt, and a worm may sting,
And a child will sometimes stand;
But a poor dead soldier of the King
Can never lift a hand.)

They whoop and halloo and scatter the dirt
Until their tushes white
Take good hold in the army shirt,
And tug the corpse to light,

And the pitiful face is shewn again
For an instant ere they close;
But it is not discovered to living men—
Only to God and to those

Who, being soulless, are free from shame,
Whatever meat they may find.
Nor do they defile the dead man’s name—
That is reserved for his kind.

Rudyard Kipling
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quinta-feira, 30 de novembro de 2017



E me disseste: vem. E havia
alguns despojos sobre a areia, algumas
ressentidas grinaldas
no limiar das têmporas. Havia
alguns gestos suspensos, um cofre
de esmeraldas, um torpor
nos membros retardados. E havia
um colar para as mãos, uma colina
para os lábios e uma flor
intacta perfumando
o silêncio, à beira
de indizíveis planícies.


Albano Martins
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quarta-feira, 29 de novembro de 2017



É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa

não como quem
de ilusão
precisa

Tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos


António Reis
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terça-feira, 28 de novembro de 2017



Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrebalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.


Rui Pires Cabral
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segunda-feira, 27 de novembro de 2017



Nada é completamente o que
A razão crê
A vida é uma casa
Sombria e calma
Se no quarto do lado
Eu te pressinto
É com o peito retirado
De minha alma
Cada ruído é um baque
Vindo de ti
Não há pior lei do que
Viver duplicado
Morro a cada instante
Do que eu amo
Porém vivo mesmo assim
Deus sabe como
O que sonhamos do amor
O amor nega
O coração não para
De ir para onde ele corre.


Aragon
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quarta-feira, 22 de novembro de 2017



Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projecto de abri-la
sem haver outro lado?

O projecto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?


Carlos Drummond de Andrade
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terça-feira, 21 de novembro de 2017



Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada mais.»

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, «Nunca mais».

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome «Nunca mais».

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».
Disse o corvo, «Nunca mais».

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca mais».

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!


Edgar Allan Poe
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segunda-feira, 20 de novembro de 2017



Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem


Rui Caeiro
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domingo, 19 de novembro de 2017



Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois do jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.


Luís Filipe Parrado
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sábado, 18 de novembro de 2017



En 1492, los nativos descubrieron que eran indios,
descubrieron que vivían en América,
descubrieron que estaban desnudos,
descubrieron que existía el pecado,
descubrieron que debían obediencia a un rey
y a una reina de otro mundo
y a un dios de otro cielo,
y que ese dios había inventado la culpa y el vestido
y había mandado que fuera quemado vivo
quien adorara al sol y a la luna
y a la tierra y a la lluvia que la moja.


Eduardo Galeano
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sexta-feira, 17 de novembro de 2017



Não amo
melhor
nem pior
do que ninguém.

Do meu jeito amo
Ora esquisito, ora fogoso,
às vezes aflito
ou ensandecido de gozo.
Já amei
até com nojo.

Coisas fabulosas
acontecem-me no leito. Nem sempre
de mim dependem, confesso.
O corpo do outro
é que é sempre surpreendente.


Affonso Romano de Sant'Anna
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quinta-feira, 16 de novembro de 2017



Espaço e Tempo! Agora vejo que é verdade o que já tinha adivinhado,
O que adivinhei quando vadiava na relva,
O que adivinhei quando estava deitado sozinho em minha cama,
E de novo enquanto andava na praia sob as estrelas pálidas da manhã.
Meus laços e lastros me deixam, meus cotovelos repousam em abismos no mar,
Contorno as serras, minhas palmas cobrem continentes,
Caminho a pé com a minha visão.
Pelas casas quadrangulares da cidade — em cabanas de madeira, acampando com lenhadores,
Ao longo dos buracos das estradas, ao longo da ravina seca e do leito do riacho,
Capinando meu canteiro de cebolas, ou cavando, com a enxada, fileiras de cenouras e mandioca, atravessando savanas, penetrando em florestas,
Fazendo prospecção, procurando ouro no solo, cortando as cascas das árvores de uma terra recém-adquirida,
Os tornozelos queimados pela areia quente, arrastando meu barco pelo rio raso,
Onde a pantera anda de um lado para outro sobre um galho alto,onde o cervo se volta com fúria contra o caçador,
Onde a cascavel leva ao sol sua flácida extensão sobre uma pedra, onde a lontra se nutre de peixe,
Onde o crocodilo, com sua dura carapaça, dorme num braço de rio,
Onde o urso negro procura por raízes ou mel, onde o castor dá um tapa na lama com seu rabo em forma de remo;
Sobre a cana-de-açúcar que cresce, sobre o pé de algodão de flores amarelas, sobre o arroz em seu campo baixo e úmido,
Sobre a casa de fazenda de telhado pontiagudo, com sua escória em forma de leque e brotos delgados que nascem das calhas,
Sobre o caquizeiro no oeste, sobre o milho de longas folhas, sobre o delicado linho de flores azuis,
Sobre o trigo-sarraceno branco e marrom, um beija-flor e uma cigarra, lá com os outros.
Sobre o verde escuro do centeio que ondula e sombreia na brisa;
Escalando montanhas, galgando com cuidado, firmando-me em galhos baixos e raquíticos,
Caminhando pela trilha gasta na grama, aberta entre as folhas do mato,
Onde a codorna está assobiando entre o bosque e o campo de trigo,
Onde o morcego voa na noite de sétimo mês, onde o grande besouro dourado cai na escuridão,
Onde o arroio brota das raízes da velha árvore e corre para o prado,
Onde o gado está, espantando as moscas com o rápido estremecimento de seu couro,
Onde os panos de curar o queijo estão pendurados na cozinha, onde os trasfogueiros cruzam a lareira, onde as teias caem como guirlandas dos caibros;
Onde o bate-estaca colide, onde a máquina de impressão gira seus cilindros,
Onde quer que o coração humano bata com espasmos terríveis sob as costelas,
Onde o balão em forma de pêra flutua sem rumo (eu mesmo flutuo nele e olho serenamente para baixo),
Onde a viatura da vida é puxada por uma corda, onde o calor incuba ovos de um verde pálido na areia serrilhada,
Onde a baleia nada com seu filhote sem nunca deixá-lo só,
Onde o barco a vapor arrasta atrás de si sua longa flâmula de fumaça,
Onde a barbatana do tubarão corta como um floco negro a superfície da água,
Onde o brigue meio queimado está navegando em correntes desconhecidas,
Onde as conchas crescem em seu convés pegajoso, onde os corpos dos mortos se decompõem;
Onde o pendão repleto de estrelas é carregado à frente dos regimentos,
Aproximando-se de Manhattan pela ilha comprida,
Sob o Niagara, a catarata caindo como um véu sobre o meu semblante,
Sobre a soleira, sobre o bloco de madeira maciça para se montar nos cavalos do lado de fora,
Sobre a pista de corridas, ou aproveitando um piquenique, uma dança ou um bom jogo de beisebol,
Em festivais masculinos, com troças sujas, licença irônica, danças de tourada, bebedeira, risos,
No engenho de sidra, provando a doce mistura marrom, tomando o suco por um canudo,
Na atividade de descascar maçãs, querendo um beijo para cada fruto vermelho que encontro,
Em recrutamentos, festas na praia, em reuniões de vizinhos, na debulha do milho, em mutirões;
Onde o tordo-dos-remédios faz soar seus deliciosos gorjeios, cacarejos, gritos, choros,
Onde o monte de feno se ergue no terreiro, onde os talos secos estão espalhados, onde a vaca reprodutora espera no curral,
Onde o touro avança para fazer seu trabalho masculino, onde o garanhão pára a égua, onde o galo está montando na galinha,
Onde as novilhas pastam, onde os gansos mordiscam sua comida com um rápido movimento da cabeça,
Onde as sombras do pôr-do-sol se estendem sobre a pradaria vasta e solitária,
Onde as manadas de búfalo transformam numa chapada rastejante as milhas quadradas longe e perto,
Onde vacila o beija-flor, onde o pescoço do longevo cisne está se curvando e se enroscando,
Onde o martim-pescador voa perto da praia, onde ele ri seu riso quase humano,
Onde as colméias estão dispostas sobre um banco cinza no jardim, semi-oculto pelas ervas altas,
Onde as perdizes de pescoço listrado se empoleiram, fazendo um círculo no chão com suas cabeças para fora,
Onde os carros fúnebres entram pelos arcos dos portais do cemitério,
Onde os lobos do inverno latem em meio às vastidões de neve e árvores congeladas,
Onde a garça de coroa amarela vem à beira do brejo à noite e se alimenta de caranguejinhos,
Onde a água espirrada pelos nadadores e mergulhadores refresca a tarde quente,
Onde a fêmea do grilo faz soar sua flauta de cana cromática na nogueira sobre o poço,
Por fileiras de cidreiras e pepinos com folhas de fios prateados,
Pela salina ou pela clareira alaranjada, ou sob abetos cônicos,
Pelo ginásio, pelo salão enfeitado de cortinas, pelo escritório ou sala de reunião;
Satisfeito com o nativo e satisfeito com o estrangeiro, satisfeito com o novo e com o velho,
Satisfeito com a mulher simples tanto quanto com a que é linda,
Satisfeito com a quacre quando ela tira a touca e fala melodiosamente,
Satisfeito com o tom do coral da igreja caiada,
Satisfeito com as palavras fervorosas do suado pregador metodista, ditas com seriedade no culto campestre;
Olhando as vitrines da Broadway a manhã inteira, apertando a carne do meu nariz contra o vidro espesso,
Passeando na mesma tarde com o rosto voltado para as nuvens, ou por uma alameda, ou ao longo da praia,
Meu braço esquerdo e meu braço direito em torno de dois amigos, e eu no meio;
Chegando em casa com o menino cansado silencioso e de pele escura (atrás de mim, ele cavalga no final do dia),
Longe dos povoados estudando pegadas de animais, ou de mocassim,
Ao lado do leito de hospital, estendendo um copo de limonada para um paciente febril,
Perto do corpo no caixão quando tudo está quieto, examinando com uma vela;
Viajando por todos os portos em busca de permutas e aventuras,
Correndo com a multidão moderna, ansioso e volúvel como qualquer um,
Cheio de raiva contra alguém que odeio, pronto na minha loucura para esfaqueá-lo,
Solitário à meia-noite no meu quintal, meus pensamentos longe de mim por um bom tempo,
Atravessando as velhas colinas da Judéia com o Deus belo e gentil ao meu lado,
Voando pelo espaço, voando pelo céu e pelas estrelas,
Voando entre os sete satélites e o largo anel e o diâmetro de oitenta mil milhas,
Voando com os meteoros e suas caudas, atirando bolas de fogo como o resto,
Carregando a criança crescente que, por sua vez, carrega sua própria mãe cheia na barriga,
Esbravejando, aproveitando, planejando, amando, acautelando,
Recuando e preenchendo, aparecendo e desaparecendo,
Passo dia e noite por essas estradas.
Visito os pomares das esferas e espio o produto,
E olho para os quintilhões amadurecidos e os quintilhões verdes.
Vôo aqueles vôos de uma alma fluida e esfaimada,
Meu curso corre mais abaixo que os ruídos de todos os prumos.
Sirvo-me daquilo que é material e imaterial,
Nenhum vigia pode me barrar, nenhuma lei pode me evitar.
Ancoro meu navio por um instante apenas,
Meus mensageiros partem continuamente ou trazem suas conquistas para mim.
Vou caçar peles polares e a foca, saltando abismos com um cajado pontiagudo, agarrando-me a cimos quebradiços e azuis.
Subo à borla no mastro de proa,
Ocupo meu lugar, tarde da noite, no cesto do corvo,
Navegamos pelo mar ártico, abundante é a luz que nos basta,
Através da clara atmosfera expando-me na beleza maravilhosa,
As enormes massas de gelo passam por mim e eu passo por elas, o cenário é plano em todas as direções,
As montanhas de topo branco aparecem à distância, solto minha imaginação na direção delas,
Estamos nos aproximando de um grande campo de batalha, no qual logo seremos inseridos,
Atravessamos os colossais postos avançados do acampamento, passamos com pés silenciosos e com cuidado,
Ou estamos entrando pelos subúrbios de uma vasta cidade em ruínas,
Os blocos e a arquitetura destruída, mais do que todas as cidades vivas do globo.
Sou um mercenário, acampo junto às fogueiras dos invasores,
Expulso o noivo da cama e fico eu mesmo com a noiva,
Aperto-a a noite inteira às minhas coxas e a meus lábios.
Minha voz é a voz da esposa, o guincho junto ao corrimão da escada,
Mandam vir o corpo do meu homem encharcado e afogado.
Entendo os grandes corações dos heróis,
A coragem do tempo presente e de todos os tempos,
Como o capitão viu o destroço lotado e desorientado do navio a vapor, e a Morte perseguindo-o para a frente e para trás na tempestade,
Como ele se submeteu com garra e não recuou um centímetro sequer, e foi fiel durante os dias e fiel durante as noites,
E escreveu com grandes letras numa lousa, Não desanimeis, não vos abandonaremos;
Como ele os seguiu e os acompanhou durante três dias e não desistiu,
Como salvou o grupo à deriva, por fim.
Como era a aparência das mulheres delgadas em suas roupas largas quando foram embarcadas, retiradas dos túmulos que já estavam preparados para elas,
Como as silenciosas crianças de rosto envelhecido e os doentes levantados de suas camas, e os homens por barbear de lábios ásperos;
Tudo isso engulo, tem um bom sabor, gosto muito, torna-se parte de mim,
Eu sou o homem, sofri, estava lá.
O desdém e a calma dos mártires,
A mãe idosa, condenada como bruxa, queimada com o fogo da madeira seca, seus filhos a tudo testemunhando,
O escravo perseguido que desiste na corrida, apóia-se na cerca, ofegante, coberto de suor,
As fisgadas que ferem como agulhas suas pernas e seu pescoço, o tiro assassino de chumbo grosso e as balas,
Tudo isso eu sinto ou sou.
Sou o escravo perseguido, estremeço com a mordida dos cães,
O inferno e o desespero caem sobre mim, os atiradores atiram e outra vez atiram,
Aperto os paus da cerca, meu sangue goteja, diluído pela exsudação da minha pele,
Tombo sobre as ervas e as pedras,
Os cavaleiros esporeiam seus cavalos arredios, aproximam-se,
Dirigem seu escárnio contra meus ouvidos aturdidos e me batem com violência na cabeça, usando o cabo dos chicotes.
As agonias estão entre as roupas que visto,
Não pergunto ao ferido como se sente, eu mesmo me torno o ferido,
Minhas dores se voltam lívidas para mim quando me apóio na bengala e observo.
Sou o bombeiro esmagado com o esterno quebrado,
Paredes desabadas me enterraram em seus escombros,
O calor e a fumaça inspirei, ouvi os gritos dos meus camaradas,
Ouvi os golpes distantes de suas pás e picaretas,
Eles conseguiram abrir espaço entre as vigas, agora me erguem com cuidado.
Estou deitado no ar noturno na minha camisa vermelha, o silêncio geral é por minha causa,
Sem dor afinal, fico deitado, exausto mas não infeliz,
Pálidos e belos são os rostos em torno de mim, as cabeças despiram seus capacetes,
A multidão ajoelhada se apaga na luz das lanternas.
Os distantes e os mortos ressuscitam,
Aparecem como o mostrador ou se movem como ponteiros de mim, eu mesmo sou o relógio.
Sou um velho artilheiro, narro o bombardeio contra o meu forte,
Estou lá novamente.
Mais uma vez o longo rufar dos tambores,
Mais uma vez o ataque dos canhões, dos morteiros,
Mais uma vez aos meus ouvidos atentos, a reação dos nossos canhões.
Eu participo, vejo e ouço tudo,
Os gritos, as maldições, os urros, os aplausos por um tiro bem dado,
A ambulância passando lentamente, deixando um filete de sangue atrás de si,
Trabalhadores examinando danos, fazendo reparos indispensáveis,
A queda de granadas pelo teto arrombado, a explosão em forma de leque,
O som de membros, cabeças, pedras, madeira, ferro, alto no ar.
Mais uma vez gorgoleja a boca do meu general moribundo, ele sacode a mão com fúria,
Sussurra através do sangue coagulado: Não se importem comigo — dêem atenção às trincheiras.


Walt Whitman
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quarta-feira, 15 de novembro de 2017



O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio nasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.


Pedro Tamen
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terça-feira, 14 de novembro de 2017



Olheiras perplexas
deliram perguntas
que roem as unhas
das horas que passam
e estas insones
qual arame farpado
bordam respostas de pedra
que convidam ao quebranto
que doem sem clemência
que ferem sem vergonha
e morrem sem vontade
enquanto a madrugada
esvai-se gota a gota
e o perfil da aurora
entre um bocejo e outro
pendura-se nos olhos
da noite que agoniza
ao passo que a alvorada
cumprindo seu destino
floresce pontualmente
e inventa um novo dia.


Bruno Kampel
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segunda-feira, 13 de novembro de 2017



A tua imagem vem ao meu encontro vãmente
E não entra onde estou pois somente a exibo
Olhando para mim não encontrarás nada
No meu olhar só a tua sombra sonhada
Eu sou esse infeliz comparável aos espelhos
Como eles posso reflectir mas não posso ver
Como eles está vazio o meu olho e habitado
Da tua ausência que faz a sua cegueira


Louis Aragon
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segunda-feira, 6 de novembro de 2017



A grande solidão que me penhora
os trastes com que enfeito a minha casa.
Por dentro, por fora.
Em mim e no que os meus olhos tocam
até ficar vazio,
senhor de tanto frio
e paredes brancas.

A grande solidão feita de cinzas
de cigarros fumados.
De mortos vivos.
De vivos mortos.
Onde encontrarei quem me refaça
a casa.
Lhe dê a marca
intacta
da minha solidão?
Somente paredes nuas.
Amigos mortos e vivos
na solidão.


Ruy Cinatti
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domingo, 5 de novembro de 2017



À minha neta Anica
A neta explora-me os dentes,
Penteia-me como quem carda.
Terra da sua experiência,
Meu rosto diverte-a, parda
Imagem dada à inocência.
Finjo que lhe como os dedos,
Fura-me os olhos cansados,
Intima aos meus próprios medos
Deixa-mos sossegados.
E tira, tira puxando
Coisas de mim, divertida.
Assim me vai transformando
Em tempo da sua vida.


Vitorino Nemésio
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sábado, 4 de novembro de 2017



Se o Outono
fosse o cheiro de frutos
na memória

e os frutos
a calma dos sentidos

o nosso rosto com luz
ou neon
pelos cabelos
seria um retrato de mágoa
olhando o chão


António Reis
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sexta-feira, 3 de novembro de 2017



Meninas, com as Musas de peito violeta sêde zelosas,
Vós que pedis bonitas prendas e a melodiosa e clara lira.
Pois o meu corpo, outrora delicado, a velhice agora
Ataca, e fez-se branco o meu cabelo negro de ontem.
O coração está pesado, os joelhos já fraquejam,
Eles que amiúde dançavam como as corças rápidas.
Este estado eu lamento muitas vezes. Mas que fazer?
Ser sem idade, sendo-se homem, não é possível ser.
A rosada Aurora, dizia-se, a Tithonus outrora,
De amor levada, arrastou até ao fim do mundo.
A ele, então belo e jovem, mas a quem a grisalha idade
Por fim alcançou, ao marido de uma esposa imortal.


Safo
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quinta-feira, 2 de novembro de 2017



Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles
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quarta-feira, 1 de novembro de 2017



É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga

É o vapor da sede é o calor do medo.
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.


José Carlos Ary dos Santos
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terça-feira, 31 de outubro de 2017



Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
[os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome


Mia Couto
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segunda-feira, 30 de outubro de 2017



Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

Cheio de luz - como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio dos mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.


Fernando Assis Pacheco
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domingo, 29 de outubro de 2017



Aqui a acção simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e escreviam

Demasiado baixo

Fiz retroceder os limites do grito

A acção simplifica-se
Porque eu arrebato à morte essa visão da vida
Que lhes destinava um lugar perante mim
Com um grito

Tantas coisas desapareceram
Que nunca mais voltará a desaparecer
Nada do que merece viver

Estou perfeitamente seguro agora que o Verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes serem

E o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegria

E esse fogo nu que pesa
Torna a minha força suave e dura

Eis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhos

Estou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu grito
Para a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco.


Paul Eluard
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sábado, 28 de outubro de 2017



Vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas
iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforma e morre
e já não nos pertence
vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel
vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu


Al Berto
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sexta-feira, 27 de outubro de 2017



Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?


Ricardo Reis, Fernando Pessoa
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quinta-feira, 26 de outubro de 2017



Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


José Gomes Ferreira
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quarta-feira, 25 de outubro de 2017



Nas estantes os livros ficam
( até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa . O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
( amor das coisas mudas
que sussurram )
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.


Pedro Mexia
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terça-feira, 24 de outubro de 2017



Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


Mário Quintana
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segunda-feira, 23 de outubro de 2017



Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino geme em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus.


Alphonsus de Guimaraens
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domingo, 22 de outubro de 2017



Ventura que iguala aos deuses,
Em meu conceito desfruta
Quem junto de ti sentada,
As doces falas te escuta,
Goza teu mago sorrir.
Quando imagino em tal gosto
É minha alma um labirinto;
Expira-me a voz nos lábios;
Nas veias um fogo sinto;
Sinto os ouvidos zunir.
Gelado suor me inunda;
O corpo se me arrepia;
Fogem-me as cores do rosto,
Como ao vir da quadra fria
Entra a folha a desmaiar.
Respiro a custo, e já cuido
que se esvai a doce vida!
Arrisquemo-nos a tudo...
Contra uma angustia sofrida
Tudo se deve tentar


Safo
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sábado, 21 de outubro de 2017



Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
- Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.

Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida - ou a razão.


Almeida Garret
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sexta-feira, 20 de outubro de 2017



Estou sentada na cozinha, enquanto a massa ferve.
Amo as coisas concretas
descobrir seus nomes ao pequeno-almoço:
despertador, chuva na calçada, supermercado,
beijos na siesta,
um copo de vinho, amigos,
as pequenas mãos de meu filho,
pessoas na praça,
tu...
Elas produzem as mais doces e lânguidas cócegas,
como um banquete após o jejum.
Parece-me impossível afastar-me de tais coisas:
colam-se à minha caneta e parece que não consigo sacudi-las.
No entanto,
as coisas concretas não permitem atrasos,
e a massa já está pronta.
Assim é a vida.
Quando o semear do poema começava a germinar,
eis que o mundano vem intrometer-se.
E lá tenho eu que me levantar da mesa,
enquanto a sombra de um bilioso humor assenta


Miren Meabe
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quinta-feira, 19 de outubro de 2017



Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho.


Ezra Pound
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quarta-feira, 18 de outubro de 2017



Aqueles claros olhos que chorando
ficavam, quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou se estarão aquele alegre dia,
que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!


Luís Vaz de Camões
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terça-feira, 17 de outubro de 2017



A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas

Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho

Cá dentro inqueitação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Cá dentro inqueitação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda


José Mário Branco
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segunda-feira, 16 de outubro de 2017



Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tritezas e alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falta a firmesa,
Na formosura não se dê constancia,
E na alegria sinta-se a triteza,
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza.
A firmeza somente na incostância.


Gregório de Matos
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domingo, 15 de outubro de 2017



isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além


Paulo Leminski
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sábado, 14 de outubro de 2017



O que amas de verdade permanece,
o resto é escória.
O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
Mundo de quem, meu ou deles
Ou não é de ninguém?
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado

A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquim, abaixo!

O elmo verde superou tua elegância.
“Domina-te e os outros te suportarão”
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob um sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos os teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.

Mas ter feito em lugar de não fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
ter colhido no ar a tradição mais viva
Ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
Aqui o erro todo consiste em não ter feito.
Todo: na timidez que vacilou


Ezra Pound
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sexta-feira, 13 de outubro de 2017



Enquanto o nosso coração voraz
bate a descompasso com o da Terra,
não queremos ripostar demais à guerra,
fugimos de apostar demais na paz.

Compêndios de nojo, actas de festa,
são escrita tremida para nós,
mas não se lembrem doutores de erguer a voz
a dizer o que purga e o que molesta.

Só a voz do sangue ouvimos bem
quando ao leme do ventre almareámos;
fomos inocentes, já nos naufragámos,
corpos de delito, almas de refém.


Luíza Neto Jorge
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quinta-feira, 12 de outubro de 2017



No mar encontra a água seu paraíso ansiado
e o suor seu horizonte, seu fragor e plumagem.
O suor é um tronco transbordante e salgado,
uma onda selvagem.

Chega a idade do mundo mais remota
para oferecer à terra a fronde sacudida,
a sustentar a sede e o sal gota a gota,
a iluminar a vida.

Filho do movimento, primo do sol, irmão
da lágrima, deixa vagueando pelas eiras,
de abril a outubro, do inverno ao verão,
douradas trepadeiras.

Quando os camponeses vão de madrugada
empurrando o arado e fugindo ao repouso,
vestem uma blusa silenciosa e dourada
de suor silencioso.

Vestimenta de ouro dos trabalhadores,
que tanto adorna as mãos como as pupilas,
pela atmosfera espalha seus fecundos olores
uma chuva de axilas.

O sabor que há na terra melhora-se e madura:
do pranto laborioso e rescendente cai o mosto,
maná dos homens, maná da agricultura,
bebida do meu rosto.

Vós que nunca suastes, e que andais elegantes
num ócio sem braços, sem música, sem poros,
não usareis a coroa dos poros gotejantes
nem o poder dos touros.

Vivereis malcheirosos, morrereis apagados:
a formosura habita nas articulações
dos corpos que movem seus membros adestrados
como constelações.

Entregai ao trabalho, companheiros, a fronte:
que o suor, com sua espada de gostosos cristais,
com seus lentos dilúvios, vos fará transparentes,
venturosos, iguais.


Miguel Hernández
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terça-feira, 10 de outubro de 2017



Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.


Pablo Neruda
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segunda-feira, 9 de outubro de 2017



Bien sûr, nous eûmes des orages
Vingt ans d'amour, c'est l'amour fol
Mille fois tu pris ton bagage
Mille fois je pris mon envol
Et chaque meuble se souvient
Dans cette chambre sans berceau
Des éclats des vieilles tempêtes
Plus rien ne ressemblait à rien
Tu avais perdu le goût de l'eau
Et moi celui de la conquête

Mais mon amour
Mon doux mon tendre mon merveilleux amour
De l'aube claire jusqu'à la fin du jour
Je t'aime encore tu sais je t'aime

Moi, je sais tous tes sortilèges
Tu sais tous mes envoûtements
Tu m'as gardé de pièges en pièges
Je t'ai perdue de temps en temps
Bien sûr tu pris quelques amants
Il fallait bien passer le temps
Il faut bien que le corps exulte
Finalement finalement
Il nous fallut bien du talent
Pour être vieux sans être adultes

Oh, mon amour
Mon doux mon tendre mon merveilleux amour
De l'aube claire jusqu'à la fin du jour
Je t'aime encore, tu sais, je t'aime

Et plus le temps nous fait cortège
Et plus le temps nous fait tourment
Mais n'est-ce pas le pire piège
Que vivre en paix pour des amants
Bien sûr tu pleures un peu moins tôt
Je me déchire un peu plus tard
Nous protégeons moins nos mystères
On laisse moins faire le hasard
On se méfie du fil de l'eau
Mais c'est toujours la tendre guerre


Oh, mon amour
Mon doux mon tendre mon merveilleux amour
De l'aube claire jusqu'à la fin du jour
Je t'aime encore tu sais je t'aime


Jacques Brel
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domingo, 8 de outubro de 2017



Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor
sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal
todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler
teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura
e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale
até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião
que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira
alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto
se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia
deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.


Agostinho da Silva
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sábado, 7 de outubro de 2017



Este campo,
vasto e cinzento,
não tem começo nem fim,
nem de leve desconfia
das coisas que vão em mim.

Deve conhecer, apenas
(porque são pecados nossos)
o pó que cega meus olhos
e a sede que rói meus ossos.

No verão, quando não há
capim na terra
e milho no paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.

Às vezes, nas longas tardes
do quieto mês de dezembro
vou a uma serra que sei
e as coisas da infância lembro:

instante azul em meus olhos
vazios de luz e fé
contemplando a festa rude
que a infância dos bichos é …

No lugar onde eu nasci
havia um rio ligeiro
e um campo verde e mais verde
de um janeiro a outro janeiro

havia um homem deitado
na rede azul do terraço
e as filhas dentro do rio
diminuindo o mormaço.

Não tinha as coisas daqui:
homens secos e compridos
e estas mulheres que guardam
o sol na cor dos vestidos

nem estas crianças feitas
de farinha e jerimum
e a grande sede que mora
no abismo de cada um.

Havia este céu de sempre
e, além disto, pouco mais
que as ondas nas superfícies
dos verdes canaviais.

Mas, os homens que moravam
na língua do litoral
falavam se desmanchando
das terras gordas e grossas
daquele canavial

e raras vezes guardavam
suas lembranças mofinas
as fumaças que sujavam
os claros céus que cobriam
as chaminés das usinas.

Às vezes, entre iguarias,
um comentário isolado:
a crônica triste e curta
de um engenho assassinado.

Mas logo à mesa voltavam
que a fome bem pouco espera
e os seus olhos descansavam
em porcelanas da China
e cristais da Baviera.

Naquelas terras da mata
bem poucos amigos fiz,
ou porque não me quiseram
ou então porque eu não quis.

Lembro apenas um boi triste
num lençol de margaridas
que era o encanto do menino
que alegre o tangia para
as colinas coloridas.

Um dia, naquelas terras
foi encontrado um boi morto
e os outros logo disseram
que o seu dono era o homem torto

que em vez de contar as coisas
daqueles canaviais
vivia de mexericos
“entre estas índias de leste
e as Índias Ocidentais”.

A verde flora da mata
(que é azul por ser da infância)
habita: os meus olhos com
serenidade e constância.

Este campo,
vasto e cinzento,
é onde às vezes me escondo
e envolto nestas lembranças
durmo o meu sono redondo,

que o que há de bom por aqui
na terra do não chover
é que não se espera a morte
pois se está sempre a morrer:

Em cada poço que seca
em cada árvore morta
em cada sol que penetra
na frincha de cada porta

em cada passo avançado
no leito de cada rio
por todo tempo em que fica
despido, seco, vazio.

Quando o sol doer nas coisas
da terra e no céu azul
e os homens forem em busca
dos verdes mares do sul,

só eu ficarei aqui
para morrer por completo,
para dar a carne à terra
e ao sol meu branco esqueleto,

nem ao menos tentarei
voltar ao canavial,
pra depois me dividir
entre a fábrica de couro
e o terrível matadouro
municipal.

E pensar que já houve um tempo
em que estes homens compridos
falavam de nós assim:
o meu boi morreu,
que será de mim?

Este campo,
vasto e cinzento,
não tem entrar nem sair
e nem de longe imagina
as coisas que estão por vir,

e enquanto o tempo não vem
nem chega o milho ao paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.



Carlos Pena Filho
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sexta-feira, 6 de outubro de 2017



Esta casa é a tua casa
quanto ao que permanece
nem sei que dizer
tanto me feriu a
insignificância do mundo
a relativa veracidade concedida aos lírios
minhas habilidades inexperientes
a obscuridade brilha para lá
da própria enseada


José Tolentino de Mendonça
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quinta-feira, 5 de outubro de 2017



Nada é tão precário quanto viver
Nada quanto ser é tão passageiro
É quase como gelo derreter
E para o vento ser ligeiro
Chego onde sou estrangeiro

Um dia passas a margem
De onde vens mas onde vais então
Amanhã que importa que importa ontem
Muda o cardo e o coração
Tudo é sem rima nem perdão

Passa na tua têmpora teu dedo
Toca a infância como os olhos veem
Baixa as lâmpadas mais cedo
A noite por mais tempo nos convém
É o dia claro envelhecendo

As árvores são belas no outono
Mas da criança o que é sucedido
Eu me olho e me assombro
Deste viajante desconhecido
Seu rosto e seu pé desvestido

Pouco a pouco te fazes silêncio
Mas não rápido o bastante
Para não sentires tua dessemelhança
E sobre o tu-mesmo de antes
Cair a poeira do tempo

É demorado envelhecer enfim
A areia nos foge entre os dedos
É como uma água fria em torvelim
É como a vergonha num crescendo
Um couro duro corroendo

É demorado ser um homem uma coisa
É demorado renunciar totalmente
E sentes-tu as metamorfoses
Que se passam internamente
Dobrar nossos joelhos lentamente

Ó mar amargo ó mar profundo
Qual é a hora da preamar
Quanto é preciso de anos-segundos
Ao homem para o homem abjurar
Por que por que esse gracejar

Nada é tão precário como viver
Nada quanto ser é tão passageiro
É quase como gelo derreter
E para o vento ser ligeiro
Chego onde sou estrangeiro


yyyyyyyyy
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quarta-feira, 4 de outubro de 2017



O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova-York e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bares.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas, as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos dos cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlinos
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! – ou morre.


Joaquim Namorado
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terça-feira, 3 de outubro de 2017



É Outono, como sabes.
O chão forrado a vento e ouro
eterniza a última estação
resumida pelo Sol
sobre os meus ombros.

No chão há uma rosa que ninguém conhece.
Essa não sou eu.

No meu colo há um berço.
Junto a ele, o teu nome de neve
percorrido pela música
de Vénus.

Vê.
Dá-me a tua mão.

É tudo quanto eu peço.

Maria Azenha
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segunda-feira, 2 de outubro de 2017



Desarrezoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.
Não espera razões, tudo é despeito,
tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.
Doutra parte, a Razão tempos espia,
espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia:
Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?


Sá de Miranda
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domingo, 1 de outubro de 2017



Recuso-me a ficar amolecido
Tragicamente cilindrado
E muito antes de lutar - vencido
E muito antes de morrer - violado.

Recuso-me ao silêncio e à mordaça
Serei independente, livre e exacto
A verdade é uma força que ultrapassa
A própria dimensão em que combato.

Recuso-me a servir a violência
Embora a minha voz de nada valha
Mas que me fique ao menos a consciência
De que tentei romper esta muralha.

Recuso-me a ter medo e a estiolar
Na concha dos poetas sem mensagem
Que me levem o corpo e a coragem
Mas que me fique esta voz para cantar.


João Apolinário, Luis Cila
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sábado, 30 de setembro de 2017



Espera-me e eu voltarei,
mas espera-me muito.
Espera-me quando cair a neve
e chegarem as chuvas tristes,
quando chegar o calor,
não deixes de esperar.
Espera-me, quando já
ninguém esperar e se tiver
esquecido já o ontem.
Espera-me mesmo que as cartas
não cheguem de longe.
Espera-me quando todos
estiverem já fartos de esperar.
Espera-me e eu voltarei,
não ames – peço-te –
quem repetir de memória
que é tempo já de olvidar;
mesmo que mãe e filho julguem
que eu não existo mais.
Deixa que os amigos, ao lume,
se cansem de esperar e bebam
vinho amargo em memória de mim.
Espera-me e não
te apresses a beber com eles.
Espera-me e eu voltarei,
para que a morte se encha de raiva.
O que nunca me esquecer
dirá talvez de mim: coitado, teve sorte.
Jamais compreenderão
aqueles que jamais esperaram.
Tu é que me salvaste do fogo.
De como sobrevivi
saberemos tu e eu,
porque simplesmente me esperaste,
como ninguém me esperou.


Konstantin Simonov
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sexta-feira, 29 de setembro de 2017



Se eu pudesse dizer-te: - senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar no mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém - Vê se adivinhas…
Então um fértil jogo amor seria.
Não este descerrar a mão vazia!


Alexandre O'Neill
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A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.


Albano Martins
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quarta-feira, 27 de setembro de 2017



Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem


Rui Caeiro
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terça-feira, 26 de setembro de 2017

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Podes dizer ao mundo inteiro
que estas letras são tuas.
assim como os desenhos que fiz,
os espaços que deixei.
 
Podes dizer a toda a gente que um dia
te amei e que foste tu quem me fez poeta.
Podes nadar em orgulho ao saber
que todos os copos que bebi foram por ti.
Que os cigarros que fumei ansiosa e
apressadamente foram pela saudade
do teu corpo.

Quando falarem de raios e relâmpagos,
de trovões e de tufões, vais poder
dizer que fui eu quem fez a China,
quem ergueu muralhas e deitou as
lágrimas de sangue.
 
Quando te perguntarem se um dia me
conheceste, diz que sim.
Responde um afirmativo de poder e de vontade.
 
Podes deixar o medo do conhecimento
alheio, agora que te sou realmente alheia.
 
Quando um dia o mundo se
desfizer verdadeiramente em estações trocadas
o Verão pelo Outono ou o Inverno pela
Primavera - aí podes descansar.
Podes contar à galáxia e aos seus
sobreviventes que, meu eterno desconhecido,
um dia me fizeste rainha.


José Eduardo Agualusa
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