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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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sexta-feira, 22 de dezembro de 2017



De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.


Natália Correia
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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016



Cansadas de me chamar.
Trago os meus lábios salgados
E algas no paladar.
Eu sou um grande oceano
Que só fala a voz do mar!
Mas já sinto o mar cansado
De pedir o luar ao céu
Que a Noite não lhe quer dar!


Natália Correia
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sábado, 17 de outubro de 2015


creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,

creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,

creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. amém.



Natália Correia
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segunda-feira, 13 de julho de 2015


Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
não é a vida. Nem é a morte.


Natália Correia
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terça-feira, 12 de maio de 2015


O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro


Natália Correia
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sábado, 4 de abril de 2015


Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino

E não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insecto

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um monge

Ah, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!

Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?

Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:
Uma inflação de deuses que não pode parar
Como um pássaro cego à nora da intriga
Que é a morte no centro connosco a circular.

Será o mesmo tempo que nos cabe?
Talvez sejas a raça prematura
Duma gota de orvalho que se há-de
Negar à minha sede desértica e futura.

Como o brilho dum sol partido ao meio
Damos luz pela nostalgia da metade.
Partes para ser gaivota no meu seio.
Mas não trazes no bico uma cidade.

Aqui pousou um pássaro de lume
Que deixou um voo subterrâneo
Na repetida vibração do gume
Que cada hora traz à lâmina do crânio.

Teus dedos num relógio como a picada duma abelha
A fabricar o mel da estação perdida!
Que quanto a primavera um rouxinol na telha
É toda a melodia que traz na unha a vida.

O navio tem dois extremos ermos:
Os cabelos para Vénus e os pés para Marte.
Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.
E com lenços à vista ninguém parte.

Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me
Como uma pedra pelas minhas mãos futuras
E ficasse para sempre a aquecer-me
Ao sol que cega efémeras criaturas!

Se soltasses as aves da rotina
E de um jorro de deuses abrisses a comporta
E reclinada em tua espádua genuína
Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!
Se tu viesses cavaleiro branco
Orvalhado pela manhã do meu instinto.
E ficasses a chamar-me como um canto
No porvir do nosso último recinto!

Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa
Nas praias donde Maio se retira,
Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa
Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!

Ah, as sementes que te exigem em declive
Entre abismos onde nunca te despenhas
E esfumados voos em que te embebes e revives
O que de ti já pousou no cume das montanhas!

Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta
Na incontinência do voo que a abrasa.
Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.
Se houver uma casa sem tecto, talvez seja a casa.


Natália Correia
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sexta-feira, 13 de março de 2015

*


Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exactidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.

Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.

Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.

Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.




Natália Correia
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quinta-feira, 23 de outubro de 2014


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia
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sexta-feira, 4 de julho de 2014


Estava eu na ermida de São Simeão,
cercaram-me as ondas que tão altas são!

eu esperando o meu amigo!
eu esperando o meu amigo!

Estando eu na ermida diante do altar,
cercaram-me as ondas grandes do mar:

eu esperando o meu amigo!
eu esperando o meu amigo!

Cercaram-me as ondas que tão altas são!
remador não tenho nem embarcação:

eu esperando o meu amigo!
eu esperando o meu amigo!

Cercaram-me as ondas do alto mar;
não tenho barqueiro e não sei remar:

eu esperando o meu amigo!
eu esperando o meu amigo!

Remador não tenho nem embarcação;
morrerei formosa na imensidão:

eu esperando o meu amigo!
eu esperando o meu amigo!

Não tenho barqueiro e não sei remar
morrerei formosa no alto mar:

eu esperando o meu amigo!
eu esperando o meu amigo!

Cantigas d'Amor e d'Amigo/24'
Natália Correia
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