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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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segunda-feira, 28 de agosto de 2017



Na noite de Madrid eu vi um homem morto
Jazia ali como uma afronta para os vivos
que voltavam dos bares com música nos olhos
com estrelas na testa e festa nos ouvidos
e passavam de táxi a boa velocidade
Há quanto tempo o homem jazeria ali
à superfície escura do asfalto
já meio devolvido à terra nossa mãe?
Não o cobria o manto dos heróis
nenhum clarim tocara em sua honra
Como o confortaria a santa madre igreja?
Tombara apenas imolado ao dia-a-dia
Pagara com a vida a paz da consciência
de toda uma cidade que dormia
E ele crescia alastrava na estrada
e assumia inesperadas proporções
quando há bem pouco ainda se reduzia ao dia
Quem seria? Quem fora?
Que jornal conteria a imensidão do nome
de quem como um insulto ali jazia?
Que pensamentos próximos tivera?
E o que levaria ele nos bolsos?
Donde viria? Sorriria? Onde ia?
Fora criança? Sonharia ser feliz?
Mudaria de vida na manhã seguinte?
Brincara alguma vez naquela mesma rua?
Fora criança ali onde profundamente o vi?
Teria soluções para problemas que tivesse?
Seria porventura um bom chefe de família?
Disporia da consideração da vizinhança?
Era bom funcionário? Homem de futuro?
Mas já naquele momento o rosto lhe cobriam
pois não conseguiria ver nem as estrelas
nem ao menos a luz dos citadinos candeeiros
Havia curiosos e polícia havia uma ambulância inútil
para quem como cama só teria a pedra fria
«Aonde vai?» - perguntou-me o homem do táxi
«- Eu tenho cinco mil pesetas - respondi-lhe
Leve-me pelas ruas da cidade até nascer o sol
talvez ele possa dizer-me alguma coisa
daquelas muitas coisas que gostava de saber
(o sol é hoje uma das minhas poucas soluções)
Passe longe do corpo por favor»
Lembrei-me de leituras soterradas
de súbito subiram-me à memória cenas esquecidas
Samaritano eu? Mais um levita
que calmo procurava a promessa do dia
Inquietação ou pena? Sombra de metafísica?
Política? Moral? Lição? Comportamento?
Queria alguma coisa? Não sabia
Posso-vos garantir que não sabia
Só sabia que olhava e nenhum mar havia


Ruy Belo
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terça-feira, 24 de maio de 2016



Tu estás aqui
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
                                                                                                    o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
                                                                                                  outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
                                                                                                   a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

Ruy Belo
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sábado, 30 de janeiro de 2016



Tem o amor a arte de tornar eterno
aquele que por amor tem de morrer
e até de morrer jovem amiúde pois os deuses amam
aquele que perece em plena juventude
e assim se fixa petrifica e permanece


Ruy Belo
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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016



No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

Ruy Belo
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quinta-feira, 5 de novembro de 2015


Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer


Ruy Belo
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quinta-feira, 9 de abril de 2015





Que nome dar ao poeta
esse ser dos espantos medonhos?
Um só encontro próprio e justo:
o de josé o homem dos sonhos
Eu canto os pássaros e as árvores
Mas uns e outros nos versos ponho-os
Quem é que canta sem condição?
É josé o homem dos sonhos
Deus põe e o homem dispõe
E aquele que ao longo da vereda vem
homem sem pai e sem mãe
homem a quem a própria dor não dói
bíblico no nome e a comer medronhos
só pode ser josé o homem dos sonhos.


Ruy Belo
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quinta-feira, 5 de março de 2015


És e renasces como a pura linha do amanhecer
e como o sol primeiro és incandescente
rosado de repente e logo a pouco e pouco
cada vez mais rubro e mais intenso
até à amarela gema de ovo que é o sol ao pôr-se
Quanto eu não dava deus por sempre te ouvir rir
riso tão fresco como tilintar de loiça
Não confies em mim mulher mas desconfio haver de amar-te
até ao fim do mundo frase conhecida que me surge
no poster ilustrado com esse poema do
palhaço morto do miguel macedo
miúdo que por certo e muito bem desconhecia
a inscrição de pedra inscrita aos pés do túmulo de pedro
esse maldito infante embêbedo de amores
pela açafata a nova isolda do novo tristão
pedro possivelmente pederasta misturado nesses
concúbitos danados que geravam lobisomens
homem que nasce e morre sem amparo de árvores
Seis são os anjos reparei depois tal como foram seis
os beijos que te dei e depois respirei e descansei
que o sétimo seria fosse beijo ou dia
um tempo de repouso e não de guerra
Suspeito ter em ti essa mulher que se requer e que
se nos arrima mais que amor nos dá a rima
Tu não és como eu sou mensageira da chuva
da água calculada e racionada
tu libertas o corpo da mais pura espuma
Rosa dos ventos vivos e poéticos
quisera coroar-te de hera rosmaninho e louro
quisera engrinaldar-te a fronte dos junquilhos amarelos
colhidos nas montanhas junto ao mar
sob o recente sol do dia de ano novo
que em noites de tormenta canta tanto
que para ele caminho até quase cair
depois de tropeçar no escuro nalgum tufo de verdura
quisera para ti o cheiro que me chega
agreste dessa planta sumarenta há bem pouco pisada
quisera para ti a cúpula de tudo essa
perene cúpula que sempre se procura e sempre foge
no desencanto mesmo da menos fugitiva cópula
Sonho contigo e vejo-te valsar
de branco a valsa vienense de johann strauss
elegantemente embebida num vestido branco que embebias
do requinte distante do elegante porte
que sem misericórdia porém sem acinte
opunhas garça de pescoço alto e fino
à mole escura da igreja de atouguia da baleia
inaugurando o ano inaugurando a vida
a causa sem remédio já por mim perdida
E se durante o sono contigo sonhei
ter-te perdido para sempre agora sei
Um dia por exemplo deixarei de ver-te
um dia deixarei de vez de ver-te
dissolvidos os ombros confundidos os cabelos
entre inúmeros ombros e cabelos de indistinta gente
nas salas populosas de um museu
Mas surgisses de súbito ó aparição
do solo da cidade onde estiveste há tantos anos
onde por ter um dia estado jamais estiveste
surgisses tu aqui e tudo mudaria
Porém eu sei sem dúvida que um dia após
uma colher de olhar em água dissolvida
além do nome voltarás a ter pra mim um apelido
Na prematura primavera de sevilha
o poeta na musa se assevera
e a palavra em seus olhos mais uma vez brilha
E o vento que te envia a primitiva primavera
com que na raiz dos teus cabelos principia
a construir esse edifício de alegria
visível para quem em ver-te como eu há muito persevera
Hás-de cair da vida um dia como agora este cinzeiro
esta recordação de inolvidável refeição no restaurante anselmo
de madrid se quebra nos ladrilhos do meu quarto
Onde sem ser no verão sem ser em mim
terá enfim ficado o teu sorriso?
É digna essa cabeça de mulher do espaço desta tarde
que me explode nos olhos mal eu saio do metro
Não sei não sei donde é que venho não importa vindo eu
do metro ou tarde é para ti que na verdade vou


Ruy Belo
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sábado, 7 de junho de 2014


Era a calma do mar naquele olhar
Ela era semelhante a uma manhã
teria a juventude de um mineral
Passeava por vezes pelas ruas
e as ruas uma a uma eram reais
Era o cume da esperança: eternizava
cada uma das coisas que tocava
Mas hoje é tudo como um fruto de setembro
ó meu jardim sujeito à invernia
A aurora da cólera desponta
já não sei da idade do amor
Só me resta colher as uvas do castigo
Sou um alucinado pela sede
Caminho pela areia dêem-me um
enterro sob o sol enterro de água

Ruy Belo
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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

Ruy Belo
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