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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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domingo, 29 de novembro de 2020



Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve!...
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...
Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.


Fernando Pessoa
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segunda-feira, 9 de novembro de 2020



À tua palavra me acolho lá onde
o dia começa e o corpo nos renasce
Regresso recém-nascido ao teu regaço
minha mais funda infância meu paul
Voltam de novo as folhas para as árvores
e nunca as lágrimas deixaram os olhos
Nem houve céus forrados sobre as horas
nem míseras ideias de cotim
despovoaram alegres tardes de pássaros
O sol continua a ser o único
acontecimento importante da rua
Eu passo mas não peço às árvores
coração para além dos frutos
Tu és ainda o maior dos mares
e embrulho-me na voz com que desdobras
o inumerável número dos dias


Ruy Belo
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sábado, 31 de outubro de 2020



(dos) amanheceres...
E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.
Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
no côncavo da mão o sol nascia.


Pedro Tamen
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sexta-feira, 30 de outubro de 2020



Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra


Sophia de Mello Breyner Andresen
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terça-feira, 20 de outubro de 2020



Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré cheia da manhã com que
todos os náufragos sonharam.



Nuno Júdice
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quarta-feira, 14 de outubro de 2020



Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...


Fernando Pessoa
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sexta-feira, 9 de outubro de 2020



Because there are avenues
Of traffic lights, a phone book
Of brothers and lawyers,
Why should you think your purse
Will not be tugged from your arm
Or the screen door
Will remain latched
Against the man
Who hugs and kisses
His pillow
In the corridor of loneliness?

There is a window of light
A sprinkler turning
As the earth turns,
And you do not think of the hills
And of the splintered wrists it takes
To give you
The heat rising toward the ceiling.

You expect your daughter
To be at the door any moment
And your husband to arrive
With the night
That is suddenly all around.
You expect the stove to burst

A collar of fire
When you want it,
The siamese cats
To move against your legs, purring.

But remember this:
Because blood revolves from one lung to the next,
Why think it will
After tonight?


Gary Soto
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quinta-feira, 28 de novembro de 2019





Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me dio el corazón, que agita su marco
Cuando miro el fruto, del cerebro humano
Cuando miro el bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales, que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Gracias a la vida, gracias a la vida
Gracias a la vida, gracias a la vida



Violeta Parra 
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quarta-feira, 18 de setembro de 2019



I can feel she has got out of bed. 
That means it is seven a.m.
I have been lying with eyes shut, 
thinking, or possibly dreaming,
of how she might look if, at breakfast, 
I spoke about the hidden place in her 
which, to me, is like a soprano’s tremolo,
and right then, over toast and bramble jelly,
if such things are possible, she came.
I imagine she would show it while trying to conceal it.
I imagine her hair would fall about her face
and she would become apparently downcast,
as she does at a concert when she is moved.
The hypnopompic play passes, and I open my eyes
and there she is, next to the bed, 
bending to a low drawer, picking over 
various small smooth black, white,
and pink items of underwear. She bends 
so low her back runs parallel to the earth,
but there is no sway in it, there is little burden, the day has hardly begun.
The two mounds of muscles for walking, leaping, lovemaking,
lift toward the east—what can I say?
Simile is useless; there is nothing like them on earth.
Her breasts fall full; the nipples
are deep pink in the glare shining up through the iron bars
of the gate under the earth where those who could not love
press, wanting to be born again. 
I reach out and take her wrist
and she falls back into bed and at once starts unbuttoning my pajamas.  Later, when I open my eyes, there she is again, 
rummaging in the same low drawer. 
The clock shows eight. Hmmm. 
With huge, silent effort of great,
mounded muscles the earth has been turning.
She takes a piece of silken cloth
from the drawer and stands up. Under the falls 
of hair her face has become quiet and downcast, 
as if she will be, all day among strangers, 
looking down inside herself at our rapture.


Galway Kinnell
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segunda-feira, 26 de agosto de 2019



Escuta, meu Amor, quando eu voltar
De tão longe, e avistar de novo o Tejo,
O meu Restelo que em saudades vejo
Como outra nova Índia a conquistar;

Quando a minha alma inquieta sossegar
Este voo indomável, num adejo,
E o amor e o céu e Deus, vivos num beijo,
Iluminarem todo o nosso lar;

Quando, meu Santo Amor, voltar o dia
Do primeiro regresso, e a aleluia
Madrugar tua alma anoitecida...

Hás-de embalar-me sobre o teu regaço
Arrolar, encantar o meu cansaço...
E então será o meu regresso à Vida!


Augusto Casimiro
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domingo, 25 de agosto de 2019



Ténue é o cais
no Inverno frio.
Ténue é o voo
do pássaro cinzento.
Ténue é o sono
que adormece o navio.
No vago cais
do balouço da bruma
ténue é a estrela
que um peixe morde.
Ténue é o porto
nos olhos do casario.
Mas o que em fora nos dilui
faz-nos exactos por dentro.


Fernando Namora
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sábado, 24 de agosto de 2019



Chove?... Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro em mim.
Se escuto, alguém dentro em mim ouve
A chuva, como a voz de um fim ...

Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior,
Ó céu mais útil que o meu pranto?


Fernando Pessoa
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segunda-feira, 19 de agosto de 2019



Inda não voltas? — Como a vida salta
Destes quadros de esplêndidas molduras!
Mulheres nuas, raras formosuras...
Só a tua nudez entre elas falta ...

Pede-te o espelho de armação tão alta,
Onde revias tuas formas puras;
Pedem-te as cegas, lúbricas alvuras
Do linho, que a Paixão no leito exalta.

Pedem-te os vasos cheios de perfume
Os dunquerques, as rendas, as cortinas,
Tudo quanto a mulher de bom resume,

Escolhido por tuas mãos divinas...
E sai do teu altar vazio, ó nume,
A tristeza indizível das ruínas ...


Luís Delfino
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domingo, 18 de agosto de 2019



Lindas mulheres indagam onde está o meu segredo
Não sou bela nem meu corpo é de modelo
Mas quando começo a lhes contar
Tomam por falso o que revelo

Eu digo,
Está no alcance dos braços,
Na largura dos quadris
No ritmo dos passos
Na curva dos lábios
Eu sou mulher
De um jeito fenomenal
Mulher fenomenal:
Assim sou eu

Quando um recinto adentro,
Tranqüila e segura
E um homem encontro,
Eles podem se levantar
Ou perder a compostura
E pairam ao meu redor,
Como abelhas de candura

Eu digo,
É o fogo nos meus olhos
Os dentes brilhantes,
O gingado da cintura
Os passos vibrantes
Eu sou mulher
De um jeito fenomenal
Mulher fenomenal:
Assim sou eu

Mesmo os homens se perguntam
O que vêem em mim,
Levam tão a sério,
Mas não sabem desvendar
Qual é o meu mistério
Quando lhes conto,
Ainda assim não enxergam

É o arco das costas,
O sol no sorriso,
O balanço dos seios
E a graça no estilo
Eu sou mulher
De um jeito fenomenal
Mulher fenomenal
Assim sou eu

Agora você percebe
Porque não me curvo
Não grito, não me exalto
Nem sou de falar alto
Quando você me vir passar,
Orgulhe-se o seu olhar

Eu digo,
É a batida do meu salto
O balanço do meu cabelo
A palma da minha mão,
A necessidade do meu desvelo,
Porque eu sou mulher
De um jeito fenomenal
Mulher fenomenal:
Assim sou eu


Maya Angelou
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quinta-feira, 13 de junho de 2019



dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


Al Berto
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quarta-feira, 12 de junho de 2019



Quando o disserem calo ou farta brotoeja
cardo sem gosto e arremedo velho
tão serôdio apoucar de outros mais hábeis
ou por tão burilada terem sua arte
ou por sofrentes mais no engenho dela,
hei-de guardá-lo meu por apara da gesta
que todos tentamos por modesta
ao pegar das palavras todas gastas
e pôr-me com mais força a ver da giesta
e do rumor das rugas dos que passam
que para isso estou,
bem mais que no contá-lo e dividi-lo.
Por isso não se afina entendimento lato
nem maestria mais ao escrito e trato:
são tantos os instantes a cuidar pla rama e rua
que só fica o que resta
fresta
cantata rota e rouca
entre o escrito e a estória.


Maria Velho da Costa
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terça-feira, 11 de junho de 2019



Parti, uma feiticeira possuída,
assombrando o ar negro, de noite, mais ousada;
sonhando o mal, pairei furtiva
sobre as casas singelas, pela calada:
coisa solitária, doze dedos, fora dela.
Uma mulher destas não é bem uma mulher, na verdade.
Eu fui como ela.

Encontrei as amenas cavernas no arvoredo,
enchi-as de caçarolas, esculturas, prateleiras,
inúmeros bens, armários, sedas;
para os vermes e os duendes, fiz ceias:
lastimando-me, corrigindo o desarrumado.
Uma mulher destas é mal interpretada.
Eu fui como ela.

Andei na tua carruagem, cocheiro,
passando por aldeias, os meus braços nus acenaram,
aprendi os derradeiros rumos radiosos e a sobreviver
ao que ainda sinto nas coxas – as tuas labaredas a morder,
e onde as tuas rodas giram, estalam-me as costelas.
Uma mulher destas não tem vergonha de morrer.
Eu fui como ela.


Anne Sexton
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segunda-feira, 10 de junho de 2019



Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exatamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira para tudo?

Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.


Almada Negreiros
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domingo, 9 de junho de 2019



Reading what I have just written, I now believe
I stopped precipitously, so that my story seems to have beens
slightly distorted, ending, as it did, not abruptly
but in a kind of artificial mist of the sort
sprayed onto stages to allow for difficult set changes.

Why did I stop? Did some instinct
discern a shape, the artist in me
intervening to stop traffic, as it were?

A shape. Or fate, as the poets say,
intuited in those few long ago hours—

I must have thought so once.
And yet I dislike the term
which seems to me a crutch, a phase,
the adolescence of the mind, perhaps—

Still, it was a term I used myself,
frequently to explain my failures.
Fate, destiny, whose designs and warnings
now seem to me simply
local symmetries, metonymic
baubles within immense confusion—

Chaos was what I saw.
My brush froze—I could not paint it.

Darkness, silence: that was the feeling.

What did we call it then?
A “crisis of vision” corresponding, I believed,
to the tree that confronted my parents,

but whereas they were forced
forward into the obstacle,
I retreated or fled—

Mist covered the stage (my life).
Characters came and went, costumes were changed,
my brush hand moved side to side
far from the canvas,
side to side, like a windshield wiper.

Surely this was the desert, the dark night.
(In reality, a crowded street in London,
the tourists waving their colored maps.)

One speaks a word: I.
Out of this stream
the great forms—

I took a deep breath. And it came to me
the person who drew that breath
was not the person in my story, his childish hand
confidently wielding the crayon—

Had I been that person? A child but also
an explorer to whom the path is suddenly clear, for whom the vegetation parts—

And beyond, no longer screened from view, that exalted
solitude Kant perhaps experienced
on his way to the bridges—
(We share a birthday.)

Outside, the festive streets
were strung, in late January, with exhausted Christmas lights.
A woman leaned against her lover’s shoulder
singing Jacques Brel in her thin soprano—

Bravo! the door is shut.
Now nothing escapes, nothing enters—

I hadn’t moved. I felt the desert
stretching ahead, stretching (it now seems)
on all sides, shifting as I speak,

so that I was constantly
face to face with blankness, that
stepchild of the sublime,

which, it turns out,
has been both my subject and my medium.

What would my twin have said, had my thoughts
reached him?

Perhaps he would have said
in my case there was no obstacle (for the sake of argument)
after which I would have been
referred to religion, the cemetery where
questions of faith are answered.

The mist had cleared. The empty canvases
were turned inward against the wall.

The little cat is dead (so the song went).

Shall I be raised from death, the spirit asks.
And the sun says yes.
And the desert answers
your voice is sand scattered in wind.



Louise Glück 
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domingo, 19 de maio de 2019



Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira

Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Sinais de bem, desejos de cais
Pequenos fragmentos de luz

Falar da cor dos temporais
Do céu azul, das flores de abril
Pensar além do bem e do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
O mundo lá sempre a rodar
E em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer

Pensei no tempo e era tempo demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça

Eu simplesmente não consigo parar
Lá fora o dia já clareou
Mas se você quiser transformar
O ribeirão em braço de mar

Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você
O mundo lá sempre a rodar
E em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer



Márcio Borges, Milton Nascimento
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quinta-feira, 16 de maio de 2019



Lugares da infância onde
sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.

Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?

Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.

O quarto eu não o via
porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia
e essa era a sabedoria.

Agora sei estas coisas
de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.

A casa já não cresce
à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.

Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois,
já o jantar tinha arrefecido.

E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.


Manuel António Pina
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quarta-feira, 15 de maio de 2019



Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.


António Gedeão
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domingo, 12 de maio de 2019



Hoje, para morrer era preciso
que a música viesse. E nos beijasse
as pálpebras por dentro. E um sorriso
desceria da água à nossa face.

Tudo seria finalmente liso
como um rio que nunca mais passasse.
Tudo seria tudo, não sendo preciso
um relógio qualquer que nos guardasse

o grande amor que então percorreria
o corpo. Chamar-lhe-iam gravidade,
ou peso, ou nada, ou, simplesmente, fria

inércia, fim. Mas quem respira sabe-
-lhe a fundo o nome. De raiz diria:
"amor irresistível. Terra. Ou nave."


Fernando Echevarria
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sábado, 11 de maio de 2019

**



Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...


Vinícius de Moraes
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domingo, 21 de abril de 2019



Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...



Álvaro de Campos, Fernando Pessoa
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sexta-feira, 12 de abril de 2019



Em outros tempos chegavam à ponte das candeias multidões
em penitência suplicando graças
para os soldados da guerra, histórias de amor,
as doenças, para ganhar dinheiro, juventude,
para desejos secretos, por exemplo muitos homens
desentendiam-se com a sua gaita,
se lhe diziam: preparada? Ela respondia: não!
Bastava cruzar a ponte com uma vela acesa
que não podia apagar-se até à cruz do moinho.
Mas o vento soprava, uma brisa descia
da montanha e as mãos fatigavam-se
de tanto proteger a chama e então toca a tentar,
tentar de novo, um mês, um ano...
A uma velha quase a chegar ao fim
pegou-se-lhe fogo à roupa e la se foi tudo, roupa, tempo e feitio.
Desde essa desgraça os crentes
abandonaram a devoção e mais ninguém lá vai.

No passado domingo dei uma espreitadela à ponte
e vi o filho tolo de Filomena
com uma vela acesa na mão.
A chama estava firme e nem a brisa do fundo
do rio a movia. Qual será a graça que suplica?
Uma vida normal ou continuar a sua loucura?
Antes de chegar à cruz do moinho
logo ali, a dois passos, parou
e soprou sobre o lume.


Tonino Guerra
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segunda-feira, 19 de novembro de 2018

*



Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.


Manuel António Pina
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quinta-feira, 8 de novembro de 2018



Não renegue,
Não renegue, coisa vinda de coisa,
Não renegue nessa vaidade nova
O velho pó original.

De que cova, de que passado de carne e osso
Sonhando, sonhando jazo
Debaixo da maldição auspiciosa,
Enfeitiçada, viva, esquecendo minha matéria-prima…
A morte não me permite um instante para lembrar

Temendo que, tal pedra de estátua transmutada demais,
Grão por grão eu recorde o pó original
E, olhando para baixo num degrau da memória, repita:
Eu nunca fui isso.


Laura Riding
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sexta-feira, 2 de novembro de 2018



Tengo deseo,
siento nostalgia del deseo.
Disfrutar de la luz y los soles del Mundo
del esplendor de la tristeza
y el testimonio de la antigüedad.
Siento deseos de desaparecer,
de fugarme contigo
a los mapas sin tiempo.
Sed del espíritu,
cervezas al mediodía
en Friedrichshain,
dejar de ser mi sombra,
repoblar de fantasmas
nuestra imaginación,
palpando la alegría
de verte respirar.


Ángel Petisme
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quarta-feira, 31 de outubro de 2018



Ignoravam
que a beleza do homem é maior do que o homem

Viviam para pensar pensavam para se calarem
Viviam para morrer eram inúteis
Ocultavam a sua inocência na morte

Tinham posto em ordem
sob o nome de riqueza
sua miséria sua bem-amada

Mastigavam flores e sorrisos
Só encontravam um coração na ponta das carabinas

Não percebiam a injúria dos pobres
Dos pobres amanhã sem problemas

Sonhos sem sol tornavam-nos eternos
Mas para que a nuvem se transformasse em lama
Desciam deixavam de fazer frente ao céu

A noite do seu reino a sua morte a sua bela sombra miséria
Miséria para os outros

Esqueceremos estes inimigos indiferentes
Em breve uma multidão
Repetirá baixinho a chama clara
A chama para nós dois unicamente paciência
Para nós dois em toda a parte o beijo dos vivos.


Paul Eluard
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Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.


Mário de Sá Carneiro
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terça-feira, 30 de outubro de 2018



The first time I walked
With a girl, I was twelve,
Cold, and weighted down
With two oranges in my jacket.
December. Frost cracking
Beneath my steps, my breath
Before me, then gone,
As I walked toward
Her house, the one whose
Porch light burned yellow
Night and day, in any weather.
A dog barked at me, until
She came out pulling
At her gloves, face bright
With rouge. I smiled,
Touched her shoulder, and led
Her down the street, across
A used car lot and a line
Of newly planted trees,
Until we were breathing
Before a drugstore. We
Entered, the tiny bell
Bringing a saleslady
Down a narrow aisle of goods.
I turned to the candies
Tiered like bleachers,
And asked what she wanted -
Light in her eyes, a smile
Starting at the corners
Of her mouth. I fingered
A nickle in my pocket,
And when she lifted a chocolate
That cost a dime,
I didn’t say anything.
I took the nickle from
My pocket, then an orange,
And set them quietly on
The counter. When I looked up,
The lady’s eyes met mine,
And held them, knowing
Very well what it was all
About.

Outside,
A few cars hissing past,
Fog hanging like old
Coats between the trees.
I took my girl’s hand
In mine for two blocks,
Then released it to let
Her unwrap the chocolate.
I peeled my orange
That was so bright against
The gray of December
That, from some distance,
Someone might have thought
I was making a fire in my hands.


Gary Soto
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quarta-feira, 24 de outubro de 2018



Quando, pela meia-noite, de improviso ouvires
passar, invisível, um tíasos
com música soberba e cânticos,
a sorte que afinal te abandona, tuas obras
falidas, teus planos de vida
– tudo ilusório – com nênias vãs não lastimes.
Como um bravo que, há muito, já se preparava,
saúda essa Alexandria que te está fugindo.
Não, não te deixes burlar, dizendo: “foi sonho”,
ou: “meus ouvidos me enganaram”;
desdenha essa esperança vã.
Como um bravo que, há muito, já se preparava,
como convém a quem é digno desta pólis,
aproxima-te – não hesites – da janela
e escuta comovido, porém
sem pranto ou prece pusilânime,
como quem frui de um último prazer, os sons,
os soberbos acordes do místico tíasos:
e saúda Alexandria, enquanto a estás perdendo.

Konstantinos Kavafis
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terça-feira, 23 de outubro de 2018



Ontem
morreu a puta mais velha
da vila.
Tinha cabelos brancos,
um dente de ouro
e uma foto adolescente.
Nunca reclamou do tempo,
do governo
e do preço das coisas.
Mas, desconfio, tinha desertos dentro de si.

Foi vista um dia
Olhando uma nuvem.

Gostava de um vestido vermelho
que nem lhe servia mais.

Quando ela morreu
dois negrinhos barrigudos
olhavam o incêndio
num monte de lixo.

Dizem que foi a paixão
de um importante político
nos anos 40.
Teve jóias,
roupa nova,
convite pra festas
e pneumonia.
Sobraram-lhe as rugas:
michê de fim de expediente.
Votou em Getúlio
e sempre respeitou a sexta-feira santa

Paixão ela teve duas
Um manco de bigodinho
e um outro que voltou pro Norte.
O esmalte no dedão descascava
Como descascam certos dias
e a gente não vê.

Morreu só
a puta mais velha da vila. E uma doença
que quase a matou. Um cara perguntou
se ela era feliz. Outro, por que não casou.
E ela sabia
que um Domingo
rodeada de netos no subúrbio
é também uma prisão.

Preferiu a cerveja morna
e o São Jorge sobre a cômoda.

Morreu velha essa puta na vila.
Sem saber a idade ao certo
mas dos setenta chegou perto.

Morreu numa tarde anônima
com criança olhando incêndio
e cachorro magro
passeando na vila. Tarde comum
com tédio de vestido vermelho
e de varal de vila.
o mesmo tédio
de que é feita a fúria da primavera
e a esperança das putas.

Marçal Aquino
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sábado, 20 de outubro de 2018



Ilustríssimo, caro e velho amigo,
Saberás que, por um motivo urgente,
Na quinta-feira, nove do corrente,
Preciso muito de falar contigo.

E aproveitando o portador te digo,
Que nessa ocasião terás presente,
A esperada gravura de patente
Em que o Dante regressa do Inimigo.

Manda-me pois dizer pelo bombeiro
Se às três e meia te acharás postado
Junto à porta do Garnier livreiro:

Senão, escolhe outro lugar azado;
Mas dá logo a resposta ao mensageiro,
E continua a crer no teu Machado.


Machado de Assis
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sexta-feira, 19 de outubro de 2018



The sun goes down-
Heat rises from the grasses
Into what should be a moonless sky.

This hour, once again,
The dry river brims
With a night that needs no current
To move west to the see.


Gary Soto
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sábado, 13 de outubro de 2018



Não há nada mais transparente do que o amor
Deitado como morto na sua ilusão
Tenso e erecto na sua verdade.

Nascer estando a olhar cada entardecer
Dormir surdo encostado ao mal
Sonhar sem se colocar em causa.

O caminhar plúmbeo das lágrimas
Sobre as grandes pedras e o nosso júbilo
Pelas folhas verdes que vemos no bosque.

Eu sou um animal estranho
Falo-te com as orelhas que tenho
Com a voz que falo escuto e te entendo.

Corredor do evidente-opaco
Ser ou sonhar que se é
Sobreviver a si mesmo ou voltar a nascer.

Na primeira vez que te vejo dou-te um beijo
Na vez seguinte tratas-me por tu
E para sempre dou-te a minha fé.

Nada tenho a ganhar
Amo-te demasiado para te perder
Amo-te e não é a brincar.


Paul Eluard
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sexta-feira, 12 de outubro de 2018



Senhor se eu me engano e minto,
Se aquilo a que chamei a vossa verdade
É apenas um novo caminho da vaidade,
Se a plenitude imensa que em mim sinto,
Se a harmonia de tudo a transbordar,
Se a sensação de força e de pureza
São a literatura alheia e o meu bem-estar,
Se me enganei na minha única certeza,
Mandai os vossos anjos rasgar
Em pedaços o meu ser
E que eu vá abandonada
Pelos caminhos a sofrer.


Sophia de Mello Breyner Andresen
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quarta-feira, 26 de setembro de 2018



Vinte dias atrás meti uma rosa no copo
perto da janela em cima da mesinha.
Quando reparei que as folhas
perdiam o vigor
sentei-me diante do copo para ver a rosa morrer.

Esperei um dia e uma noite.

A primeira pétala desprendeu-se às nove da manhã
e deixei que caísse em minhas mãos.
Nunca tinha estado ao leito de morte de um moribundo
nem quando a minha mãe morreu,
pois então estava de pé, ao longe, no fundo da rua.


Tonino Guerra
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terça-feira, 25 de setembro de 2018



Não me refiro aos trágicos: Romeu e Julieta
Tristão e Isolda, Pedro e Inês nem a alguns ignorados
ícones como Yourcenar e Grace ou Rimbaud e Verlaine. Refiro-me
aos que se buscam sem saber nada
do fogo que arde sem se ver, órficos cantos, mas côncavos
e convexos se combinam cruzando genes e transitórios
tempos de vida enquanto povoam cidades, salas
de parto, comércios, indústrias, portais, geriatrias. E dos campos deixados
à exportação do vinho e dos litorais ainda com redes
e barcos cresce um ruído de formiga banal e curtida
de pequenos destinos. Esses são os grandes heróis
dos amores difíceis
que não ficam no poema.


Inês Lourenço
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segunda-feira, 24 de setembro de 2018



Palavras quase inaudíveis por baixo
de um ritmo, pareciam palavras
quando encostaste o ouvido
ao pequeno pássaro. O pequeno pássaro
tem um coração que continua a bater
dentro do seu corpo depenado, quase
não nasceu e já está a morrer.

Está um homem de idade indefinida,
vestido de cor indefinida, nem alto nem baixo,
nem gordo nem magro, iluminado pelo verde
da cruz da farmácia, vê-me a pegar no pássaro
e quando eu me aproximo ainda se indefine
mais, tem medo, desata a fugir e eu grito-lhe,
homem indefinido, venha cá, não vê que é
apenas um pássaro que está a morrer?

Depois foste a apanhar o comboio que pára
em Todas, tivesse sido outro o comboio
que apanhaste e tudo seria diferente.
A vida toda seria diferente. Seria
melhor, seria pior, seria diferente.

Olha-se para aquele corpo e não parece
que esteja preso por arames. O corpo
fará análises e exames. Valores normais, nada
de especial, não há razão para alarme. Mas, se
se olhar bem, ver-se-ão os arames
que o prendem. A quê? Prendem-no
ao amor, porra, ao amor, é preciso gritar?

Nem no sonho nem na vida se sabe
o fim, acordo-te antes que a dúvida
te faça retirar a mão de onde repousavas.
Ainda me atormentais, banais segredos
do reino animal, atormentar-me-eis sempre,
pelos vistos sempre, sempre, sempre.


Helder Moura Pereira
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sábado, 22 de setembro de 2018



(das) transformações...
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.
Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a supensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão - é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.
Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha.


Herberto Helder
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Não tenhas medo, ouve:
É um poema.
Um misto de oração e de feitiço…
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz…

Miguel Torga
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sexta-feira, 21 de setembro de 2018



Em ti não busco mais do que pensar-te:
tenho a bruma e a luz que haja nela.
Olhar o lume em ti ou numa vela
é ter do seu calor a melhor parte
Em que nisso não somos mais que nós
pra ser a chama grés, desfigurada,
em que a dual presença não é nada
senão a morte, pois, perante, após.
Assim te olho, amor, e só pressinto
crescer em ti o acto de te seres.
Nada procuro mais do que tu saberes
que por ser a teu lado não te minto
minha mesa, meu pão e meu absinto:
que tu longe de ti é que me feres.


Pedro Tamen
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Coração e lâminas doiradas no vento de Verão,
estoira sobre as nossas cabeças a imposição
de várias categorias de ruído, nós perante
o nojo, a ocupação dos passeios, o lixo
a esvoaçar ao vento de Verão, e o lixo de cima,
onde há quase sempre uma televisão, ruído
repetido pelo dia, seguem-se opções de compra,
situações de empréstimo, maneiras de aluguer
por tudo quanto é lado, nós num refúgio,
numa espécie de refúgio, a fazer dos braços
um horizonte fechado, sim, de protecção,
tábua de muro, a parte de cima de raiz
a sobreviver, ainda, golpe após golpe.
O vento de Verão estragado à nossa volta,
imagina que o golpe de sorte não se tinha dado
e éramos sombras inúteis a carregar fardos
de desgosto, sem dizer uma única palavra
quando passávamos um pelo outro cheios de sede.


Helder Moura Pereira
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quarta-feira, 19 de setembro de 2018



tem sotaque divino
a única poesia que frequento

sou íntimo dos deuses

sei o que digo

não o que escrevo

a verdade tem um cheiro
que não engana

chamar-se-ia senão mentira
a poesia

Ramiro Osório
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terça-feira, 10 de julho de 2018



O que te peço, Senhor, é a graça de ser.
Não te peço mapas, peço-te caminhos.
O gosto dos caminhos recomeçados,
com as suas surpresas, as suas mudanças, a sua beleza.
Não te peço coisas para segurar,
mas que as minhas mãos vazias
se entusiasmem na construção da vida.
Não te peço que pares o tempo na minha imagem predilecta,
mas que ensines os meus olhos a encarar cada tempo
como uma nova oportunidade.
Afasta de mim palavras,
que servem apenas para evocar cansaços, desânimos, distâncias.
Que eu não pense saber já tudo acerca de mim e dos outros.
Mesmo quando eu não posso ou quando não tenho,
sei que posso ser, ser simplesmente.
É isso que te peço, Senhor:
a graça de ser de novo.


José Tolentino de Mendonça
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sábado, 7 de julho de 2018



Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho.

Isto passado, quando me desponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m'espanto às vezes, outras m'avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
Quando m'era mister tant' outr' ajuda,
de que me valerei, se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.



Sá de Miranda
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sexta-feira, 6 de julho de 2018



Aqui, na areia,
Sentada a beira do caís da minha baía
do caís simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobra o caís desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira a do caís a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições
HUMANIDADE


Alda Espírito Santo
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quarta-feira, 4 de julho de 2018



eu vivo clandestina
e não é mole essa vida clandestina
mas posso me orgulhar da qualidade da minha pele
e da temperatura do meu beijo,
eu quero fazer com você um pacto de delicadeza.
eu quero me sentir Alteza,
para te ceder todos os músculos
ser arbusto dos seus beijos
vamos sair esburacando a madrugada
trocando beijos e tragadas
a lua é uma lantejoula da Nasa
que brilha leitosa no meu vestido estrelado


Fausto Fawcett, Maria Bethânia
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sexta-feira, 23 de março de 2018



Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.


Miguel Torga
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quarta-feira, 21 de março de 2018



Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


Alberto Caeiro/Fernando Pessoa
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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018



Porque foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança
Porque já eras meu
Sem eu saber sequer
Porque és o meu homem
E eu tua mulher

Porque tu me chegaste
Sem me dizer que vinhas
E tuas mãos foram minhas com calma
Porque foste em minh'alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser


Antonio Carlos Jobim, VinIcius de Moraes
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domingo, 31 de dezembro de 2017



"...Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.
A (minha) vida é como se me batessem com ela."

Bernardo Soares, Fernando Pessoa
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sábado, 30 de dezembro de 2017



A hiena gosta dos blindados imobilizados no deserto
porque as suas tripulações estão mortas.
Ela pode esperar.
Ela espera até que mil e uma tempestades de areia
tenham corroído o aço.
Então chega a sua hora. A hiena
é o animal heráldico das matemáticas.
Ela sabe que não deve haver resto.
Seu deus é zero.


Heiner Müller
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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017



Preferia não saber das ruas
onde posso desfazer-me do desejo.
Ir ao encontro das estátuas
para me refazer do medo.

A noite é pequena e cabe
num gesto atirado ao ar
quando se parte sem olhar para trás,
nem necessidade de confirmar amor algum.

Tirei tudo dos bolsos.
Toquei o rosto para sentir a temperatura.
Não estou morta nem vou morrer.

De regresso a casa, a única certeza:
que a manhã virá para reflectir a palidez,
a habitual dificuldade em existir cedo.


Marta Chaves
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quarta-feira, 27 de dezembro de 2017



Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.


Daniel Faria
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terça-feira, 26 de dezembro de 2017



Se te lançares em pleno amor
as palavras da água são diferentes
e a coragem de perder deve estar perto.
Se consentires no sal que tudo ilude,
abre bem os braços e as mãos
para que nada escape ao crucifixo, à
queda selvagem dentro de outro. Conta
as folhas do milagre e pronuncia outono,
 assimila os longos olhos das palavras
e perde, perde tudo. Abre e fecha a boca
como um peixe que em breve irá morrer.
Depois, procura um som que nunca ouviste,
e cai.


Isabel Cristina Pires
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segunda-feira, 25 de dezembro de 2017



Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

O Natal é quando um Homem quiser!

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitros de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e combóios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher


Ary dos Santos
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domingo, 24 de dezembro de 2017



Que noite de Natal, tristonha agreste
De neve amortalhava-se o caminho
E o vento sibilada do nordeste
Por entre as frinchas da porta do moinho

Sentado na velha mó, já carcomida
Onde incidia a luz d´uma candeia
O moleiro de barba encanecida
Com a mulher comia a parca ceia

Próximo do moinho, ouviu-se em breve
Uma voz e o moleiro abrindo a porta
Viu um velhinho todo envolto em neve
Vergado ao peso d´uma esperança morta

Entrai meu peregrino da desgraça
Disse o moleiro ao pálido ancião
Aqui não há dinheiro, existe a graça
De haver carinho, piedade e pão

Vinde comer agasalhar-se ao lume
Festejar o nascer do Deus Menino
Porque a vida somente se resume
Na escravidão imposta p´lo destino

Então o velhinho com uma voz sonora
Pronunciou levando as mãos ao peito
Abençoado seja a toda a hora
Este moinho que é por Deus eleito

Henrique Rego
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sexta-feira, 22 de dezembro de 2017



De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.


Natália Correia
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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017



No poema ficou o fogo mais secreto
O intenso fogo devorador das coisas
Que esteve sempre muito longe e muito perto


Sophia de Mello Breyner Andresen
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terça-feira, 19 de dezembro de 2017



Moon marked and touched by sun
my magic is unwritten
but when the sea turns back
it will leave my shape behind.
I seek no favor
untouched by blood
unrelenting as the curse of love
permanent as my errors
or my pride
I do not mix
love with pity
nor hate with scorn
and if you would know me
look into the entrails of Uranus
where the restless oceans pound.
I do not dwell
within my birth nor my divinities
who am ageless and half-grown
and still seeking
my sisters
witches in Dahomey
wear me inside their coiled cloths
as our mother did
mourning.
I have been woman
for a long time
beware my smile
I am treacherous with old magic
and the noon's new fury
with all your wide futures
promised
I am
woman
and not white


Audre Lorde
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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017



Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe
Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe
Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.


Gastão Cruz
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sábado, 16 de dezembro de 2017



Há um sol de cavalo nas ruas e nos olhos
há um cavalo de sol nos campos e nas cores
e a tua língua embriaga-se de sabores tão verdes,
Como as maçãs da infância das tias e das avós.

Há um sul e há um norte na cabeça do cavalo,
uma agulha se crava no centro do meu cérebro
as minhas vértebras dilatam-se pelo vigor do novo,
por cada pedra ferida e pelo vigor do intenso,
O minério do cavalo, a parede, o incêndio
tudo devora a palavra, tudo #tomba e se centra
no vigor de um alento de primavera verde.


António Ramos Rosa
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sexta-feira, 15 de dezembro de 2017



Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.


Cecília Meireles
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segunda-feira, 11 de dezembro de 2017




Podias obedecer a um registo de perder
o respeito, levantar a saia se a tivesses,
alçar a perna se cão fosses, mandar à merda
quem vem socorrer-te da vida e te decepa os dedos.

Com um rigor de artilharia que amortece o cansaço,
o combate quase parece sereno. De vez em quando,
fazes a conta de cor e dizes apesar de tudo, inspira-me
e não queres saber muito mais do que isto.

Estás na vida como na montra alguns relógios,
parado, e pensas numa sepultura no mar, tudo
menos esta terra, tudo menos uma corda, tudo menos
viver a pulso e ter de sacudir a chuva contra o casaco.

Os dias sem prognóstico, vivendo apenas para
esperar a madrugada, e que ela venha como o cortejo
e aprendas a ficar.


Marta Chaves
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quinta-feira, 7 de dezembro de 2017



Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...


Alberto Caeiro, Fernando Pessoa
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quarta-feira, 6 de dezembro de 2017



Sonhei de novo o sonho antigo:
Maio, juras de amor eterno,
Ambos sentados sob a tília
E tendo a noite como abrigo.
E juras a cada momento,
Risinhos, carícias, beijos:
Sem mais, porém, mordeu-me a mão,
Pra me lembrar do juramento.
Ó namorada de olhos claros,
Com seus caninos entre os ais:
Estou de acordo quanto às juras,
Mas a mordida foi demais.


Heinrich Heine
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