________



há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________


Mostrar mensagens com a etiqueta Helder Moura Pereira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Helder Moura Pereira. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 24 de setembro de 2018



Palavras quase inaudíveis por baixo
de um ritmo, pareciam palavras
quando encostaste o ouvido
ao pequeno pássaro. O pequeno pássaro
tem um coração que continua a bater
dentro do seu corpo depenado, quase
não nasceu e já está a morrer.

Está um homem de idade indefinida,
vestido de cor indefinida, nem alto nem baixo,
nem gordo nem magro, iluminado pelo verde
da cruz da farmácia, vê-me a pegar no pássaro
e quando eu me aproximo ainda se indefine
mais, tem medo, desata a fugir e eu grito-lhe,
homem indefinido, venha cá, não vê que é
apenas um pássaro que está a morrer?

Depois foste a apanhar o comboio que pára
em Todas, tivesse sido outro o comboio
que apanhaste e tudo seria diferente.
A vida toda seria diferente. Seria
melhor, seria pior, seria diferente.

Olha-se para aquele corpo e não parece
que esteja preso por arames. O corpo
fará análises e exames. Valores normais, nada
de especial, não há razão para alarme. Mas, se
se olhar bem, ver-se-ão os arames
que o prendem. A quê? Prendem-no
ao amor, porra, ao amor, é preciso gritar?

Nem no sonho nem na vida se sabe
o fim, acordo-te antes que a dúvida
te faça retirar a mão de onde repousavas.
Ainda me atormentais, banais segredos
do reino animal, atormentar-me-eis sempre,
pelos vistos sempre, sempre, sempre.


Helder Moura Pereira
________________________________________________________________________________________________________________________________


sexta-feira, 21 de setembro de 2018



Coração e lâminas doiradas no vento de Verão,
estoira sobre as nossas cabeças a imposição
de várias categorias de ruído, nós perante
o nojo, a ocupação dos passeios, o lixo
a esvoaçar ao vento de Verão, e o lixo de cima,
onde há quase sempre uma televisão, ruído
repetido pelo dia, seguem-se opções de compra,
situações de empréstimo, maneiras de aluguer
por tudo quanto é lado, nós num refúgio,
numa espécie de refúgio, a fazer dos braços
um horizonte fechado, sim, de protecção,
tábua de muro, a parte de cima de raiz
a sobreviver, ainda, golpe após golpe.
O vento de Verão estragado à nossa volta,
imagina que o golpe de sorte não se tinha dado
e éramos sombras inúteis a carregar fardos
de desgosto, sem dizer uma única palavra
quando passávamos um pelo outro cheios de sede.


Helder Moura Pereira
________________________________________________________________________________________________________________________________


terça-feira, 29 de março de 2016



Eu não tinha nada de felino, tu sabias
que eu não tinha nada de felino.
Nenhum de nós se admirou quando
medi mal a distância e falhei o salto.
Enquanto ia no ar parecia que era
um salto bom, porém houve qualquer
coisa que correu mal e caí com estrondo
no chão. Ninguém riu. Não era caso
para rir. Grande ilusão ir pelo ar a pensar
que o salto podia ser bom, sem eu ter
nada de felino, sem nunca ter treinado,
sem fazer sequer aquecimento, sem
olho para medir distâncias. Saber medir
distâncias é uma coisa muito importante,
pode falhar-se a vida por milímetros.


Helder Moura Pereira
________________________________________________________________________________________________________________________________


quarta-feira, 15 de outubro de 2014


Ainda existem as ruas onde por acaso
nos encontrávamos? Tantos dias correram
num ano, viam-me em dias de mais
desejo apressar os passos, olhar para
o relógio, pôr falhando os discos
nas capas. Parecia ter sido só
uma despedida de um dia para o outro, agora
se escrevo é porque és apenas uma imagem
da memória, pouco faltará para que
guarde de ti um risco, um embaraço.
E sempre chegarei a tatear o rosto,
fingir que me lembro de alguns sinais,
das poucas palavras necessárias para que
eu aceitasse, duas vezes o meu corpo
esteve com o teu, outras mais do que
podes pensar. Na volta de uma esquina
não reparo, tropeço, encontro, o último
sorriso começa a nascer.

Helder Moura Pereira
________________________________________________________________________________________________________________________________

segunda-feira, 29 de setembro de 2014


Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

Helder Moura Pereira
________________________________________________________________________________________________________________________________