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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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domingo, 5 de novembro de 2017



À minha neta Anica
A neta explora-me os dentes,
Penteia-me como quem carda.
Terra da sua experiência,
Meu rosto diverte-a, parda
Imagem dada à inocência.
Finjo que lhe como os dedos,
Fura-me os olhos cansados,
Intima aos meus próprios medos
Deixa-mos sossegados.
E tira, tira puxando
Coisas de mim, divertida.
Assim me vai transformando
Em tempo da sua vida.


Vitorino Nemésio
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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016



A nossa intimidade a três ou quatro é constrangida.
Tenho medo no ângor e uma urtiga no pé.
Um dia é pouco ao pé de Margarida:
A ausência é menos sozinha,
A muita companhia dá bandos longe. Até
A vida
É
Se tua, já menos minha:
Se própria de meu, repartida,
Por muitos na atenção, nem tua é.
Só nossa solidão dual e penetrada
Evita o perigo do nada
A que, por condição, setas, as nossas pernas
Apontam na cavidade inexorável,
Fim de molécula qualquer.
Mas, entretanto, Margarida amável
Será flor, ou mulher?


Vitorino Nemésio
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quarta-feira, 25 de novembro de 2015


O poema tem mais pressa que o romance,
Asa de fogo para te levar:
Assim, pois, se houver lama que te lance
Ao corpo quente algum, hei-de chorar.

Deus fez o poeta por que não descanse
No golfo do destino e amores no mar:
Vem um, de onda, cobri-la — e ela que dance!
Vem outro — e faz menção de me enfeitar.

Os outros a conspurcam, mas é minha!
Chicoteá-la vou com a própria espinha,
Estreitam-me de amor seus braços mornos,

Transformo seus gemidos em meus uivos
E torno anéis dos seus cabelos ruivos
Na raspa canelada dos meus cornos.


Vitorino Nemésio
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sexta-feira, 6 de junho de 2014


Não negarei poesia de antes
Com poesia de depois
Mas sim direi com moléculas:
Fosse eu o niño dos bois!
Sim, o menino da aguilhada
Do meu bisavô boeiro:
Dono de bois,
Dono de bois,
Cheirando fusco de pêlo,
Raspa de chifre, bosta de vaca,
Verde erva verde no leite branco,
Azul azul do céu rogado
Em genes meus cromossomado:
O céu do mar, amplo de lua
Como coisa que fosse tua.
Que fosse tua
Como eu já sou
Nem de ninguém nem de nada,
Apenas tinta encarnada,
Pobre guanina mutada
Na Dupla Hélice nada.

Vitorino Nemésio
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domingo, 30 de março de 2014

1.

Este cão tem folhas nas orelhas,
Com quatro talos:
Mas o que este cão devia ter era calos,
E só tem olhos e ossos
E morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
Quase o diria meu irmão:
Parece gente!

2.

Este cão é redondo. Está deitado,
Rosna com gengivas de uivo.
Dizem-me que foi lobo,
Mas perdeu a alcateia
Como os homens perderam a Razão,
Que hoje serve de osso ao cão
Escapo ao cogumelo nuclear.
E por essa razão se foi deitar.




Vitorino Nemésio
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