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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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quinta-feira, 10 de setembro de 2015


Sobre a cidade não velam os anjos
e as catedrais, oblíquas e sombrias,
rasgam as madrugadas escarlates
e as ventanias que a carne magoam
evocam o martírio de santos mortos.
De súbito as canções dos cabarés
invadem as vielas assombradas.
Como é atroz tamanha decadência:
um velho soergue um cálice e grita
um brinde à loucura de Calegari;
um nobre mutilado e gordo impreca
o fato de não ter sido tragado
pelos malditos olhos de Pandora;
uma judia dança enlouquecida,
murmura o nome do senil amante
cuja cabeça pede em um prato.
Contemplo-a assombrado, indagando
que mítica mulher poderá ser:
se Pandora, Cassandra ou Salomé.
Muito maliciosa, ela ri:
Ah, nada temas. És somente um jovem
e eu uma bela mulher de olhos negros.


Daniel Francoy
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terça-feira, 28 de julho de 2015


A grande verdade sobre todos nós
é que todos nós somos alguém que não somos:
a dolorosa vítima de ontem ou talvez,
com menos alarde e sem qualquer ênfase,
o secreto algoz do amanhã.
Somos todos nós algo que já existia
em qualquer manhã de sangue e horror
antes de nosso nascimento e sob o luar
somos todos o amor renovado apesar
dos mananciais da loucura e do ódio.
Nós somos todos porque tantas vezes
é preciso dar nomes aos aos cordeiros
e então somos todos Heitor
forte, sem os calcanhares de Aquiles
e ainda podemos ser todos Quixote
ou – e quem pode dizer o contrário? -
talvez sejamos todos Rocinante a pastar
a grama verde enquanto no céu
os abutres volteiam e a má sorte
se consuma: aquelas nuvens tão
brandas, amontoados de espuma
que, quando muito, traziam uma vaga
melancolia, mal o sabíamos,
era a neblina que nos cercava,
tripulantes caducos de um navio
que ancora num porto devastado
e ainda antes de dizermos “tarde demais”
murmuramos – como que diante
do espelho – todos nós somos
o outro e ao mesmo tempo
não somos e nesse ser ou não ser
talvez alguém minta: A grande verdade
é que todos nós somos Hamlet
embora muitos não sejam príncipes
e tantos outros sejam os assassinos
do rei – o que importa? O que talvez
defina o herdeiro do trono roubado
é uma certeza que todos nós temos: existe
algo de podre infestando os ares
como a lembrança de um pesadelo
que nos sobressalta sem nos despertar,
que nos leva a um sonambulismo
tão eloquente, a ânsia de gritar
“nós somos” porque, não fosse assim,
o que seríamos nós
além do mais negro silêncio?


Daniel Francoy
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quinta-feira, 14 de maio de 2015


A chuva distorce o claro e o escuro,
e quase apaga os rostos
do homem e da mulher que estão parados
na esquina, sob a marquise.

Talvez seja melhor assim;
pensar que os rostos ainda existem
porque a esquina ainda existe
e porque chove como antes.
Talvez seja melhor esquecer
que os rostos se desmancharam
como se fossem feitos de cera
ou de qualquer outra matéria pálida.


Daniel Francoy
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segunda-feira, 30 de março de 2015


No imenso amanhã
um bafejo de sal
o início da chuva
que lava até os ossos
as gaivotas somando
o branco ao branco
e eu de regresso
sombra e memória
na aurora depois
das cogitações inúteis:
beber arsênico
abrir os pulmões
ao vácuo nas nebulosas
escavar a luz
no claustro subterrâneo
abandonar o meu nome
à sorte das raízes.


Daniel Francoy
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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015


Hei de regressar
mas será no inverno
em alguma casa
diante da praia:
o tédio, o sal,
a pele ferida,
ferrugem que a noite
põe nas dobradiças
das portas quebradas
e no coração
que ficou – brinquedo
também esquecido,
carrossel de ferro
que ainda gira entre
risos e ruínas.

No imenso amanhã
o início da chuva
lava até os ossos,
as gaivotas somam
o branco ao branco,
sombras e memórias
(bafejo de nada)
hei de regressar
na aurora depois
das questões inúteis:
brindar com arsênico,
abrir os pulmões
ao vácuo estelar,
escavar a luz
nos subterrâneos.


Daniel Francoy
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