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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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sexta-feira, 28 de julho de 2017



Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurónio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.


Ana Luísa Amaral
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sábado, 9 de maio de 2015


Em voz alta, ensaiei o teu nome:
a palavra partiu-se
Nem eco ínfimo neste quarto
quase oco de mobília

Quase um tempo de vida a dormir
a teu lado e o desapego é isto:
um eco ausente, uma ausência de nome
a repetir-se

Saber que nunca mais: reduzida
a um canto desta cama larga
o calor sufocante

Em vez: o meu pé esquerdo
cruzado em lado esquerdo
nesta cama

O teu nome num chão
nem de saudades


Ana Luísa Amaral
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segunda-feira, 27 de abril de 2015


Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite


E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:
que se não fosse:
o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,
invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.


Ana Luisa Amaral
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domingo, 20 de abril de 2014


Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
ozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são.

Ana Luísa Amaral
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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014


No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto:
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso.

Ana Luísa Amaral
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