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há o perigo de um grito lindíssimo

quando andas assim comigo no invisível




Mário Cesariny

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terça-feira, 28 de novembro de 2017



Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrebalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.


Rui Pires Cabral
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quinta-feira, 19 de novembro de 2015


Um lameiro nas férias da Páscoa com choupos
pela ribeira acima. Os primos
vêm com paus, dispostos aos apuros
de uma aventura. Prevê-se o ataque
de um enxame de vespas, alguém cairá no lodo
com a roupa de domingo.

Uma nuvem, dois cães nas ondas da erva.

Rui Pires Caral
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sexta-feira, 16 de outubro de 2015



O tempo corre nas paredes livremente
mas não toma a direcção da morte: ela esteve aqui
desde o princípio, uma vocação adormecida
debaixo do estuque.

A manhã nasce viciada nos brandos venenos
que os móveis destilam, haverá pombas
sobre o parapeito, o senhorio arrastará o chinelo
sob um eco que caminha pelo tecto.
Nada poderá perturbar a fluência da penumbra
nos cantos para onde se varre a casa
aos domingos. A pele respira tenuamente mas não posso falar
em tristeza. Este é o meu endereço, um lugar composto
para a submergência.


Rui Pires Cabral
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sábado, 22 de agosto de 2015


Houve dias cheios de sol e jogos ágeis
em redor dos lagos, uma jornada na montanha
para ouvir o eco e a sombra da nuvem
ganhando alento nas vertentes como um barco
prodigioso.

Perseguíamos nas raízes do dia uma ausência
que alastrava para o norte, para essas planícies inventadas
onde pássaros ávidos tomariam por sementes
as palavras que dizíamos.

Éramos demasiado jovens
e aos nossos olhos
o mundo tinha a idade que mais nos convinha.

Rui Pires Cabral
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terça-feira, 11 de agosto de 2015


Os dois tínhamos vindo do interior e fumado
os primeiros charros em garagens a cheirar a óleo
e a vinho azedo. O ar do atlântico que entrava pela avenida
era uma aventura, as casas faziam uma roda para proteger
a nossa inépcia. E na altura em que prendemos as mãos
nas águas fundas sobre a mesa e prometemos
que havíamos de ser sempre assim, como sabíamos
tão pouco ainda das regras naturais e do espaço sem luz
que já ameaçava essa promessa. De noite era onde fermentavam
as canções, e nós podíamos abrir uma garrafa de champanhe
na Praça da República, até parecia que nunca mais voltaríamos
a estar sós.
Rui Pires Cabral
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quinta-feira, 16 de abril de 2015


Papéis velhos com poemas: são o joio
das gavetas. Relê-los causa aversão
e uma espécie de tristeza arrependida —
são tão nossos como as recordações
e ainda vemos a circunstância precisa,
a causa, a ferida, por detrás de cada um.

Mas na altura havia esperança: é isso
que representam. Não pelas coisas que
dizem — é só descrença e fastio — mas
pela simples razão de termos querido
guardá-los. Com um pouco mais de alento,
de inspiração e trabalho, ainda se endireita
isto. Ou seja, os versos. E até a vida.

Rui Pires Cabral
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